Sobre representantes e representados
Representação. Entre os vários significados disponíveis em um pesado dicionário (sim, eles ainda existem e algumas pessoas ainda os usam, podem acreditar), encontramos os seguintes: “ideia que concebemos do mundo ou de alguma coisa”. “Conjunto de pessoas designadas para simbolizarem um grupo maior; delegação”. Em termos religiosos, imagens, pinturas, indumentárias ou rituais adquirem sacralidade ao representarem a ligação direta da humanidade com a divindade. Neste sentido, não soará estranho a ninguém a afirmação de que os católicos oram, pedem e agradecem não a estátuas de gesso, mas sim às personalidades que tais imagens representam, sejam elas santos ou o próprio Cristo. Oramos para os santos que consideramos mais próximos a nossas necessidades, nossas crenças e nossas vivências. Do mesmo modo, a Bíblia se torna sagrada na medida em que representa uma mensagem deixada por Deus a todos os homens e mulheres, uma vez que ninguém em sã consciência considerará que o próprio Criador manipulou as máquinas que imprimiram automaticamente tais páginas, cópias mais ou menos perfeitas (questão em aberto e amplamente discutida nos meios científicos) de um original que se encontra depositado em algum lugar que desconhecemos completamente. Lemos apenas as versões que consideramos fiéis a este original, uma vez que não queremos ser enganados em nossas crenças religiosas mais profundas, aquelas que, muitas vezes, modelam nosso comportamento cotidiano. Conceito de simples compreensão.
Representação é o modo pelo qual nos ligamos àquilo que imaginamos bom, positivo, desejável. Deste modo, podemos nos utilizar dela como meio de aproximação do que admiramos, buscando nos tornar melhores do que nós mesmos ao nos tornarmos, mesmo que por alguns instantes, um reflexo do ideal almejado. Esta é a essência do marketing, com seus garotos-propaganda anunciando aos quatro ventos sua predileção por determinada mercadoria na esperança de que os consumidores, na ânsia de imitar seus ídolos, as consumam com a mesma voracidade demonstrada na peça de propaganda. A busca pela representatividade, aliás, é um dos motores mais poderosos da sociedade de consumo, sempre ávida em apresentar hábitos, linguagens, vestimentas e, obviamente, propriedades como elementos definidores da personalidade. Neste sentido, tendemos a nos aproximar dos que consomem como nós, uma vez que compras parecidas demonstram, em nossa mente, valores, princípios e crenças parecidos. Eis um dos pilares da “modernidade líquida” tão bem estudada e apresentada por Zigmunt Bauman, sem dúvida um dos maiores pensadores desta virada de século.
Em política, representação é a base, as paredes e a cobertura do sistema democrático moderno. Ao substituir o elemento definidor da democracia ateniense original, de impossível aplicação nos construtos sociais nacionais por suas próprias dimensões, estabeleceu que cabe ao cidadão não mais participar diretamente da tomada de cada simples decisão no âmbito de governo (afinal, como reuniríamos as mais de cem milhões de pessoas aptas a fazê-lo no Brasil, hoje, ao mesmo tempo, todas as vezes em que uma política precisasse ser implementada?) mas, sim, eleger para fazê-lo, através do voto, a outros cidadãos que compartilhem da “ideia que concebemos do mundo” – a já apresentada definição do dicionário. Percebe-se, portanto, que representação envolve algo muito mais profundo do que simplesmente eleger a alguém para governar a nação. Envolve, isto sim, escolher a alguém que atuará como o reflexo fiel desta mesma nação, como o “símbolo do grupo maior” (novamente o dicionário), como o elo que nos aproxima daquilo que queremos ser, mas por algum motivo não conseguimos. Tem a ver com a consecução de um ideal que não conseguimos atingir por nossas próprias limitações, então nomeamos a alguém que demonstra possuir as condições necessárias para fazê-lo por nós. Em nosso nome. Como um reflexo fiel de nossos seres. Como nossos representantes.
Eis a lógica que define a “democracia representativa”. Que torna a todos os cidadãos, mais do que cúmplices ou aliados, reflexos fiéis de todos aqueles que ocupam cargos públicos por sua ação consciente e refletida. Não se trata apenas de práticas políticas ou meras questões administrativas; quando analisamos a teoria dos sistemas representativos, nos moldes em que são praticados hoje, tratamos das visões de mundo, dos princípios e dos valores compartilhados por uma dada sociedade em um determinado momento. De modo que não existe o menor cabimento em frases do tipo “votei nele, mesmo não concordando com o que ele diz”. Se “ele” apresenta pela fala, deixando patente a todos, quais são seus valores, princípios e visões de mundo, e logra receber o voto da maioria da sociedade, a única conclusão possível é que a sociedade compartilha de tais elementos. O beneficiário de tal escolha não pode mais, como querem atualmente alguns analistas mais benevolentes, ser apresentado como o principal problema da nação, sendo sua eleição apenas o sintoma mais evidente de uma doença muito mais complexa e disseminada pelo corpo social. Quem presta a mínima atenção nas conversas de esquina, ou se propõe a rifar alguns minutos de sua existência lendo comentários a notícias na internet, sabe do que estou tratando. Nenhuma lembrança é mais oportuna do que esta, o real sentido da palavra “representação”, nesta semana da consciência negra que se encerra. Também o seria na semana da mulher, do meio ambiente, do índio e de todas as numerosas minorias deste populoso país. Constatada a necessidade, esta coluna se esforça em seu pleno atendimento. Sua parte está feita. O resto, deixamos para os representados da nação. Até a próxima!
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