Vive la France!
O texto de nossa coluna dessa semana, amigo leitor, seria escrito originalmente no último domingo. Seria um texto recheado de desânimo, baseado em uma análise do contexto mundial atual baseado nas sombrias perspectivas de uma vitória da candidata de extrema-direita nas eleições gerais da França. Neste texto planejado mas nunca escrito, eu questionaria as razões que levariam uma pessoa a um ato tão radical de desinteresse pelo seu próximo quanto pode ser o voto em um ser como Marine Le Pen. Lamentaria o estado atual de nossa civilização, que coloca interesses de ordem econômica acima do bem estar de seus conterrâneos. Questionaria as noções contemporâneas de nação, as quais converteram as sociedades mais avançadas em meras tribos egoístas incapazes de enxergar naqueles que não pertencem ao mesmo grupo pessoas dignas de compaixão, de dignidade e de respeito. Argumentaria que a simples ideia de que um pedaço específico do planeta pertença a um pequeno grupo de seres humanos e a mais ninguém é apenas e tão somente uma construção teórica de raízes, aliás, bem recentes – nada além dos cerca de duzentos anos que nos separam dos primórdios do século XIX. Finalmente, defenderia uma volta aos ideias primevos de solidariedade humana, de preocupação com o bem estar do próximo como condição para seu próprio bem estar – construção teórica básica dos pais do liberalismo clássico. Concluiria com uma frase forte que diria, aproximadamente, que se um Estado é incapaz de garantir a sobrevivência digna de todos os seus cidadãos e de todos os seres (reparem que não disse “humanos” aqui) que o procuram ou que habitam em seu território, ele e a sociedade que o sustenta não possuem nenhuma razão de ser. Podem desaparecer tranquilamente, cientes de que não deixarão saudade alguma naqueles que lembrarão deles um dia. Sim, seria um texto bastante negativo. Como alguns que já tive a oportunidade de compartilhar com vocês, em momentos que considero centrais dessa nossa curta convivência de pouco mais de dois anos tornada possível pelas generosas páginas deste veículo de comunicação.
Este texto, felizmente, nunca viu a luz do dia. Torço sinceramente, aliás, para que nunca veja. Há esperança na França, embora o candidato vencedor não seja, nem de longe, aquilo que de melhor podemos desejar para aquele povo tão culto, e embora uma figura do naipe de um Donald Trump continue governando a nação econômica e militarmente mais poderosa do planeta. As perspectivas de nossas próprias eleições presidenciais são simplesmente desesperadores, e cada vez que leio nos jornais os nomes dos possíveis candidatos ao pleito de 2018 confesso que um olhar rápido em direção à gaveta onde guardo meus antidepressivos (companhia inseparável de todo bom vivente destas turbulentas primeiras décadas do novo milênio) ocorre tão naturalmente quanto qualquer ato reflexo de algum músculo de meu corpo. As nuvens, sem sombra de dúvidas, continuam pairando negras sobre nossas cabeças e sobre o horizonte. Mas nesta semana ainda é possível respirar aliviado. Uma grande democracia, com peso decisivo nas relações internacionais, conseguiu evitar a tragédia do ressurgimento do egoísmo e da irracionalidade extremos que apenas um movimento político extremo pode proporcionar. A França não abdicou da humanidade. Não se recolheu sobre si sob o falso argumento de que todos os seus problemas são culpa dos outros, típica história contada pelos fracassados que adoram projetar a causa de seus próprios defeitos e limitações nos outros, nunca em si próprio. O caminho adotado pelos franceses não é perfeito, obviamente. Mas é o melhor dentre os que poderiam ser escolhidos. Nos tempos que correm, fazer uma escolha acertada é privilégio de poucos. Que bom que coube a este povo tão importante para a história do ocidente figurar neste seleto grupo de afortunados.
A grande questão, aqui, não é de cunho político. Já tive a oportunidade de expressar nesta coluna minha profunda desconfiança com relação a conceitos e planos expressos com tanta facilidade e de modo tão simples que tornam óbvia a ignorância dos interlocutores com relação ao conteúdo das palavras que divulgam – como no exemplo dos membros do partido comunista francês que foram às ruas protestar contra a derrota de Le Pen – ou contra a vitória de Macron, sei lá, o ato em si é tão estranho que sua compreensão exige um elaborado exercício intelectual que, confesso, ainda não tive tempo de realizar. O ponto, em meu modo de entender, orbita em torno do fato de que a humanidade contemporânea parece cada vez mais propensa a se fechar sobre si mesma, abandonando projetos de longa duração e a busca pelo bem geral em nome de interesses egoístas e de curto alcance. Ultimamente negar a ciência em plena era do triunfo da razão para argumentar que o aquecimento global é uma mentira parece algo normal. Afinal a exploração dos recursos naturais não pode ser prejudicada por considerações politicamente corretas que chamam a atenção para a importância do meio ambiente na sobrevivência da humanidade. Do mesmo modo imigrantes são sempre oportunistas mal intencionados, não importam as situações absurdas que o fizeram abandonar sua terra natal, e pobres são sempre vagabundos que não gostam de trabalhar, ainda que cifras numerosas demonstrem com exatidão que nos dias que correm não basta ter vontade para se obter uma colocação profissional. No mundo da pós-verdade e dos egos inflamados (individuais e nacionais) não há lugar para a razão. Não há lugar para o bom senso. Não há lugar para a empatia. Que bom que os franceses foram capazes de iluminar com alguns raios de luz o momento trevoso que vivemos. Tomara que os brasileiros consigam fazer o mesmo nos próximos meses, corrigindo de uma vez por todas seus próprios equívocos de um passado recente demais para virar história. Até a próxima!
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