O Homem de Palha (Robin Hardy, 1973)
Tido hoje como um clássico cult que ganhou, em 2006, um esquecível remake com Nicholas Cage, O Homem de Palha (The Wicker Man em inglês) é uma obra com público fiel, mesmo não sendo um filme muito conhecido da grande audiência. O filme costuma estar classificado sob as categorias terror, musical, suspense e também de investigação.
O Homem de Palha nos apresenta ao Sargento Howie, um policial que encarna os atributos de um cristão reto que confia em sua fé e a professa. Ele é convocado a uma investigação na ilha privada de Summerisle, onde deve resolver o desaparecimento de uma garotinha chamada Rowan Morrison. Porém, ao chegar à ilha, depara-se com um local muito inusitado e diferente do que esperava. Além da estranha atitude de todos os habitantes da vila para com o caso da garota desaparecida, o Sargento Howie percebe que os costumes dos habitantes são muito diferentes do que ele está acostumado no lugar de onde vem. Ao chegar à ilha, Howie não encontra um local de confissão cristã, como o resto do Reino Unido, mas sim uma ilha que segue um tipo de paganismo que faz referência aos deuses celtas e aos ritos de fertilidade a eles correspondentes. Os homens se reúnem no Green Man Pub (aí uma referência ao “Green Man“, figura pagã antiga) onde bebem e cantam; os jovens fazem uma dança de fitas ao redor de um mastro (Maypole) enquanto cantam sobre reencarnação e fertilidade e as garotas na escola aprendem o significado dos ritos e mais tarde se reúnem para dançar nuas e saltar sobre uma fogueira entre menires. Como um cristão devoto, toda essa vida soa como loucura impura ao sargento. E é nesse contexto tão estranho que ele terá de elucidar o mistério do desaparecimento de Rowan Morrisson.
Uma palavra deve ser invocada quando falamos em O Homem de Palha: estética! O filme tem um sentimento visual de estranheza, como se nos levasse a outro mundo possível onde tudo corre de forma diferente. A fotografia é excelente: o movimento das câmeras, as cores, os trajes e os elementos pagãos agem em conjunto para trazer uma impressão única. As atuações não deixam a desejar, sendo que o filme conta com o lendário Christopher Lee no papel de Lord Summerisle, o vilão da trama e líder comunitário da ilha. Christopher Lee já chegou a afirmar ser esse o melhor filme em que já esteve, assim como o melhor papel que já teve e, ainda, o melhor desempenho por ele apresentado. O mesmo ator não recebeu pagamento para atuar no filme, pois, na época, ele participava de muitos filmes de terror de baixo orçamento da Hammer Films e ansiava escapar daquele nicho. Porém, todos esses elementos não seriam tão significativos sem um elemento fundamental dessa obra, a música! Não é sem motivos que o filme é encaixado na categoria de musical.
A música do filme foi composta por Paul Giovanni. Inspirada em canções folclóricas tradicionais, as músicas carregam uma feição obscura de grande beleza. Arranjos incríveis no violão, vozes suaves e uma sensação de mistério combinam nessa trilha sonora que até hoje influencia várias bandas. Com isso, o filme acaba influenciando o mundo da música através de bandas como Radiohead (Burn the Whitch), Agalloch e outras. A banda Iron Maiden chegou a gravar uma música chamada “Wicker Man”.
O Homem de Palha parece acompanhar uma tendência da época, a tendência de reviver esse mundo rural com toda uma camada de fantasia sobre ele, retornando aos velhos costumes e imagens que foram desapropriadas de sua magia pelo racionalismo moderno. É como um retorno, através da ficção e da fantasia, ao mundo encantado que foi retirado de nós pela tecnologia e pela inquestionável autoridade da ciência. Tal como o filme A Bruxa (2015), o gênero nos convida a visitar as florestas esquecidas, as superstições supostamente superadas e encontrar, novamente, os deuses e demônios que habitavam a natureza que parece estar tão distanciada de nossa vida moderna.
A ambientação de The Wicker Man leva a um conflito. E este não é apenas o conflito entre o cristão e o pagão, mas é também um conflito que beira a natureza ontológica; o homem como parte de uma natureza sagrada e encantada, nela integrado e fiel a cada instinto ou o homem portador de um pecado original que deve redimir pela ascese, arrependimento e boa vontade para com o próximo? O homem pagão que, como no filme, nega-se a usar a palavra “morte” e crê na reencarnação em meio à natureza ou o homem que anseia pela ressurreição junto ao Pai e vê qualidade no martírio? São dois mundos colocados frente a frente. Como parte desse redescobrimento cultural do mundo rural e de sua vida encantada, o filme nos faz olhar para outra face da vida, uma que foi negligenciada nos últimos séculos. Nesse novo velho mundo campestre, a natureza é brutal por ser verdadeira, eterna, movida pela vida e pelos seus deuses, sendo o homem parte dela que a aceita no que há de bom e no que há de ruim; os deuses vivem em tudo. Talvez a emergência dessa temática na música e no cinema nessa época vá de encontro a uma parte de nós que reprimimos com o advento da era moderna: a do mundo irracional, da natureza além do bem e do mal e do mundo povoado por deuses, santos, elementais e demônios.
Apesar de toda essa confrontação de diferentes visões de mundo, o filme não parece querer demonstrar uma grande lição que favoreça um ou outro lado. É possível que um bom católico veja o filme e partilhe da visão do policial e é possível que um simpatizante das antigas tradições veja verdade nas alegações do Lord Summerisle, líder da comunidade. Na experiência fílmica em questão, fala mais alto a reflexão de que pode haver várias visões de mundo e que cada uma pode moldar a vida e o ambiente de maneiras muito peculiares. Assim, O Homem de Palha é um filme para admirar e deixar conduzir a um mundo que, mesmo muito antigo, é novo e diferente.